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Opinião

"Democracia, para quê?! Acabe-se já com esta palhaçada"

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"Democracia, para quê?! Acabe-se já com esta palhaçada"

Foto: Sabena Costa

"Estou convosco camaradas. Bom, talvez não seja este o cumprimento que havemos de adoptar, logo falamos melhor sobre isto", escreve a atriz Ana Ademar na crónica de opinião que pode ouvir aqui.

Também estou farta de me sentir responsável pelo que vejo à minha volta: gente que trabalha e se esfola diariamente e não consegue ter dinheiro até ao fim do mês. Gente que não fala a língua procura ajuda e as entidades, como se os gritos traduzissem palavras e não intenções, gritam-lhes à porta das repartições, não vão eles ter a audácia de entrar.

Estou farta. Farta de gente a viver em barracas, sem luz e sem água ou em contentores, como se fosse uma “obra muito pia e santa”.

Farta de ouvir os professores a queixarem-se da falta de tempo, da falta de autoridade, da má educação dos pequenos, que coitadinhos não podem fazer nada e são logo admoestados.

Farta das longas filas de espera do SNS e da Segurança Social. Farta do desemprego e dos ordenados baixos.

Farta. Fartinha. Farta de ser chamada às urnas. E de ter de tomar banho, vestir uma roupa lavada e cumprimentar as pessoas com um sorriso como se este incómodo fosse um dia de festa.

Venham as famílias de gente-bem encher os lugares disponíveis na assembleia, chamem primos, irmãos e cunhados – celebre-se o natal familiar lá mesmo: na casa da democracia, que assim deixará de se chamar, para ser a casa dos Lencastre ou dos Boaventura.

Só viverá em barracas quem quiser, quem não quiser, pode ir embora. O que não falta é espaço nessa europa e nesse mundo com novas oportunidades. Desapareçam e parem de se queixar.

A cada greve feita exigindo condições de trabalho e pagamento decente de professores ou profissionais de saúde: retiram-se uns pontos na carreira, como na carta de condução. Quando perderem os pontos todos, passam a contínuas e contínuos, para tomarem conta dos meninos no recreio. E quando digo meninos, digo mesmo meninos e não na forma universal, agora tão contestada por esse wokismo insuportável que nos deixa sem saber o que chamar às coisas e às pessoas. As meninas não têm de aprender mais do que o básico. Não entendem que o desenvolvimento e uma vida profissional atrapalha a vossa verdadeira missão que é ficar na cozinha a fazer sopa (se o marido for um falhado e não conseguir suficiente para o guisado) e a parir filhos no quarto dos fundos, com a ajuda da vizinha que já teve 6 ou 7 da mesma maneira e só morreram 4.

Estou farta de tanta queixa. Voltemos aos velhos tempos em que os homens tomavam conta das mulheres, como dizem que deus manda. E escrevo deus com letra pequena, que ainda não me convenci que vou ter de ir à igreja. A não ser que o meu homem me obrigue. E para eu ter um homem, alguém tem de me empandeirar algum. Antigamente não acontecia. Casávamos todas e paríamos até não conseguirmos segurar uma pinga de xixi na bexiga. Bons tempos.

Doenças? Malformações? Sem dinheiro para o médico e medicamentos porque é pobre? Darwin ou o coelho explicam isso: deixem-se de pieguices. É a sobrevivência do mais forte. Voltemos às nossas boas origens. Há que apurar a raça. Com sorte, voltamos às caravelas e às chibatas e assumimos de uma vez por todas a escravatura que vamos fazendo em voz baixa.

Estou farta de me sentir responsável, de estar atenta, de ver tudo a correr mal e sentir-me impotente para evitar a desgraça. É ver a tijela de porcelana da tia velhinha já falecida saltar da banca da cozinha e não conseguir jogar-lhe a mão.

É muita responsabilidade. Têm razão, camaradas (resolvemos isto da denominação depois). Vamos meter isto tudo na mão de um ou dois homens que se dizem de bem. Neles confiamos. Neles podemos fiar-nos que não roubam, que não mentem, que não aldrabam, que não escondem dinheiro em estantes ou robalos nas malas dos carros, protegem as esposas e as filhas contra todos os males, mantendo-as em casa, claro. E se não for assim, a censura faz parecer que foi, porque nada se sabe e como nada se sabe nunca existiu. Assistem a touradas como os homens a sério, são crentes em deus, aliás têm contacto direto, segundo os próprios, e emocionam-se quando falam dos animais domésticos, como homens a sério.

O único potencial senão, é a facilidade com que se assustam com motas, mas toda a gente tem defeitos e este parece não ter quase nenhum. Ou se tiver, olha… a gente precisa é de mudar! Precisamos de alguém que tome conta disto e que nos deixe descansar desta responsabilidade que tivemos durante 50 anos e que, pelos vistos, não conseguimos cumprir.

….

A revolução ainda não acabou. Ainda não podemos descansar. Talvez nunca possamos fazê-lo. A democracia é outra palavra para liberdade. E sem uma, a outra não existe. Temos de persistir, mesmo cansados, mesmo desiludidos, mesmo com a certeza de que muitos não assumem o seu lugar com a honestidade e o sentido de missão que o cargo exige. A democracia é o pior dos sistemas à excepção de todos os outros, terá dito alguém[ Churchill] que ousou lutar contra a pior das tiranias. Porém, outro lutador[ Sandro Pertini] pela liberdade disse que todas as ideias são legitimas, o fascismo não. O fascismo é a morte das ideias. Toda a tolerância, mas apenas a quem é tolerante, digo eu.

Dia 10 de Março votemos com os olhos abertos, com a esperança no peito, com a certeza de que só quando todos formos cidadãos a sério, este será um país a sério. A democracia está sempre em construção, a ditadura não porque quem a defende diz que é perfeita. É um caminho longo o nosso, mas a utopia está lá, na linha do horizonte, e à medida que nos aproximamos ela afasta-se. Verdadeiramente, para a construção do cidadão ou de uma sociedade, conta o caminho que se faz para perseguir as utopias que se traçam, disse um outro[ Eduardo Galeano] que andou por cá e disse umas coisas. 

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